
A cubana Wendy Guerra, uma das convidadas mais esperadas da Festa Literária Internacional de Paraty --de 4 a 8 de agosto (veja como foi a festa de 2009)--, é desses casos raros de escritores que se não se apoiam propriamente na literatura, e muito menos em sua tradição, mas em outros meios, como o cinema, as artes plásticas e a música. Disso resulta uma prosa muito pessoal, única, feita de fragmentos poéticos, que se espalham num campo fértil entre a memória e a reflexão.
Nesse sentido, seu segundo romance, "Nunca Fui Primeira-Dama", é quase um livro-objeto ou uma performance impressa. Em busca de uma explicação para Cuba, que seja também uma forma de superá-la, como na epígrafe de Hannah Arendt (“à medida em que realmente se possa superar o passado, essa superação consistiria em narrar o que aconteceu”), e em busca também de sua própria identidade, dissolvida em parte nos segredos e sombras do regime castrista, Wendy junta trechos aparentemente casuais de diários, poemas, letras de canções, listas, cartas, documentos oficiais, históricos e reminiscências como se fossem ditados pelo ritmo espontâneo e errático da lembrança - de uma lembrança ao mesmo tempo crítica e afetiva.
A narradora é Nádia Guerra, uma versão quase idêntica à própria autora. O romance se inicia com um desabafo num programa de rádio na madrugada. Nádia, mesmo nome da mulher de Lênin, que significa esperança em russo, fala para ninguém, na calada da noite, o que pensa sobre Cuba, sobre a imposição do exemplo de seus herois. Para ela, os “verdadeiros herois são meus pais, vítimas de uma sobrevivência doméstica, calada, dilatada, dolorosa.” Ela mesma se coloca como uma singela heroina, que sobrevive nessa ilha e suporta o acaso de estar viva.
Mas Nádia/Wendy, assim como outros escritores/artistas antes dela (Renaldo Arenas, Pedro Juan Gutiérrez ), ama Cuba profundamente, apesar de tudo. Não quer deixá-la. A iha é sua família, e Fidel é um de seus muitos pais. Então procura compreender esse amor estranho que a aprisiona (no caso de Wendy, nenhum de seus livros --três de poesia e dois romances, foram publicados em Cuba). E, assim, busca a história de sua mãe, uma figura forte, inconformada, que tinha também um programa de rádio, no qual registrava a música tradicional dos velhos mestres cubanos. Era começo dos anos 80 e eles ainda não tinham sido descobertos sob a alcunha de Buena Vista Social Club.
Ela havia abandonado Cuba quando Nádia era adolescente. E deixado para trás um livro censurado dentro de uma caixa preta. Nádia recolhe os manuscritos dos escombros do que um dia foi sua casa e tenta dar-lhes forma. Trata-se da história da estoica Célia Sanches, ex-guerrilheira e principal assessora de Fidel, que todos acreditavam ser a mulher secreta do Comandante. É a história de uma mulher possivel, corajosa, leal ao regime, mas também de personalidade marcante, religiosa, apaixonada, interessada nas artes.
Ao mesmo tempo em que continua esse romance perdido, a biografia silenciada de Célia, Nádia vai à Europa para resgatar sua mãe, então casada com um russo milionário, mas perdida na rede traiçoeira do Alzheimer. O esquecimento de sua mãe torna-se mais um empecilho para o quebra-cabeças íntimo de si mesma e de Cuba. Restam as dívidas do amor, os amigos, a arte, e Diego, o namorado mexicano.
Se o livro começa num desabafo, termina num fluxo de prosa poética que desemboca num retorno às origens. Numa afirmação de ser, afinal, cubana, acima de tudo, apesar de tudo. É, entre outras coisas, o que faz de Wendy Guerra uma escritora especial, capaz de compor um retrato íntimo da ilha --mas não daquela ilha de herois de mármore, e sim da Cuba que respira duas gerações depois da revolução, a Cuba de heroinas singelas como ela.
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"Nunca Fui Primeira-Dama"
Autor: Wendy Guerra
Editora: Benvirá
Tradutor: Josely Vianna
Páginas: 256
Preço: R$ 39,90
Vinny Criado
@ Comunicação 775 Votuporanga
Nesse sentido, seu segundo romance, "Nunca Fui Primeira-Dama", é quase um livro-objeto ou uma performance impressa. Em busca de uma explicação para Cuba, que seja também uma forma de superá-la, como na epígrafe de Hannah Arendt (“à medida em que realmente se possa superar o passado, essa superação consistiria em narrar o que aconteceu”), e em busca também de sua própria identidade, dissolvida em parte nos segredos e sombras do regime castrista, Wendy junta trechos aparentemente casuais de diários, poemas, letras de canções, listas, cartas, documentos oficiais, históricos e reminiscências como se fossem ditados pelo ritmo espontâneo e errático da lembrança - de uma lembrança ao mesmo tempo crítica e afetiva.
A narradora é Nádia Guerra, uma versão quase idêntica à própria autora. O romance se inicia com um desabafo num programa de rádio na madrugada. Nádia, mesmo nome da mulher de Lênin, que significa esperança em russo, fala para ninguém, na calada da noite, o que pensa sobre Cuba, sobre a imposição do exemplo de seus herois. Para ela, os “verdadeiros herois são meus pais, vítimas de uma sobrevivência doméstica, calada, dilatada, dolorosa.” Ela mesma se coloca como uma singela heroina, que sobrevive nessa ilha e suporta o acaso de estar viva.
Mas Nádia/Wendy, assim como outros escritores/artistas antes dela (Renaldo Arenas, Pedro Juan Gutiérrez ), ama Cuba profundamente, apesar de tudo. Não quer deixá-la. A iha é sua família, e Fidel é um de seus muitos pais. Então procura compreender esse amor estranho que a aprisiona (no caso de Wendy, nenhum de seus livros --três de poesia e dois romances, foram publicados em Cuba). E, assim, busca a história de sua mãe, uma figura forte, inconformada, que tinha também um programa de rádio, no qual registrava a música tradicional dos velhos mestres cubanos. Era começo dos anos 80 e eles ainda não tinham sido descobertos sob a alcunha de Buena Vista Social Club.
Ela havia abandonado Cuba quando Nádia era adolescente. E deixado para trás um livro censurado dentro de uma caixa preta. Nádia recolhe os manuscritos dos escombros do que um dia foi sua casa e tenta dar-lhes forma. Trata-se da história da estoica Célia Sanches, ex-guerrilheira e principal assessora de Fidel, que todos acreditavam ser a mulher secreta do Comandante. É a história de uma mulher possivel, corajosa, leal ao regime, mas também de personalidade marcante, religiosa, apaixonada, interessada nas artes.
Ao mesmo tempo em que continua esse romance perdido, a biografia silenciada de Célia, Nádia vai à Europa para resgatar sua mãe, então casada com um russo milionário, mas perdida na rede traiçoeira do Alzheimer. O esquecimento de sua mãe torna-se mais um empecilho para o quebra-cabeças íntimo de si mesma e de Cuba. Restam as dívidas do amor, os amigos, a arte, e Diego, o namorado mexicano.
Se o livro começa num desabafo, termina num fluxo de prosa poética que desemboca num retorno às origens. Numa afirmação de ser, afinal, cubana, acima de tudo, apesar de tudo. É, entre outras coisas, o que faz de Wendy Guerra uma escritora especial, capaz de compor um retrato íntimo da ilha --mas não daquela ilha de herois de mármore, e sim da Cuba que respira duas gerações depois da revolução, a Cuba de heroinas singelas como ela.
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"Nunca Fui Primeira-Dama"
Autor: Wendy Guerra
Editora: Benvirá
Tradutor: Josely Vianna
Páginas: 256
Preço: R$ 39,90
Vinny Criado
@ Comunicação 775 Votuporanga